Um dos comércios que mais havia
em Assis nos 60 era pensão. Casas, salões e até sobrados, construídos em
madeira, com vários quartos, davam pousada aos milhares de aventureiros e
compradores de terras que vinham para a chamada última fronteira agrícola do
Paraná. Chegavam de jipe, caminhão, peruas ou até em lombo de burros, como é
caso de alguns pioneiros que vieram da região de Londrina, Paranavaí e Maringá.
Nas pensões, todos tinham abrigo
e comida farta, vendidos, é claro. A maioria dos negócios começavam ali e
terminavam nos loteamentos, urbanos ou rurais, que estavam sendo abertos.
Ninguém sabia o que era corretor de imóveis, mas sim "picareta", como
esses eram chamados, havia centenas.
Os taxistas tomavam o porre de
ganhar dinheiro transportando esse povo para conhecer sítios pelo interior do
município, que era muito grande. Começava no vilarejo de Terra Nova e terminava
no povoado de Brasiliana, hoje distrito de Tupãssi. Os mais velhos dizem até
hoje que, naquela época, corria dinheiro que nem água. E corria mesmo.
Um dos meus sonhos daqueles dias
era ser engraxate. Achava lindo, uma caixa de madeira nas costas, as mãos sujas
de graxa e o toc-toc da escova na madeira, avisando para o freguês trocar de pé,
ou que os sapatos estavam brilhando. Um sonho que durou somente um dia.
De tanto pedir a meu pai, ele fez
uma caixa de engraxar. Linda, pintada e leve. Com os apetrechos já dentro,
treinei na noite anterior umas escovadas no sapato dele. O mais difícil foi
aprender o batuque com o pano de dar lustro. O piá da esquina tocava até samba
no sapato com o pano dele. Dava até uns repiques que estalavam no ar. Aprendi
também, meia boca, mas aprendi.
Na manhã seguinte, lá estava eu
com a caixa nas costas, no meio da avenida, em frente a uma das pensões mais
movimentadas da cidade.
Bom ouvinte e observador, já
havia aprendido há tempos como os engraxates conquistavam o freguês.
— Vai graxa aí, freguesia? -
Perguntei ao senhor gordão, vestido de branco e com um chapéu de rico.
Encostado na parede de madeira da
pensão e sem perguntar quanto era, ele ameaçou esticar a perna, ao que eu
completei colocando a caixa no chão, acomodando um dos pés com sapatos pretos
do primeiro cliente.
Tirei a poeira com a escova
novinha e abri a lata de graxa. Decepção. Minha mãe não comprara uma graxa
nova, me deu a lata pela metade que meu pai usava em suas botinas. Pior, a cera
estava dura. A lata havia ficado aberta por dias.
Não consegui passar sequer uma
borrada de graxa no sapato do gordão, que me atingiu em cheio com um olhar de
reprovação, dizendo uma frase que só muitos anos depois eu consegui entender o
que ele quis dizer: Quem não tem competência não se estabelece.
Ainda não sei se a lição me
serviu para alguma coisa na prática, pois, muitas outras vezes dei com os
burros n'água por não planejar direito o dia seguinte. Mas, na teoria, ficou a
lição de que nada se faz sem planejamento. Se um dia vai servir, eu não sei.
Tem gente que apanha e não aprende nunca. Talvez seja o cerne da essência e,
mudar implique em ser outra pessoa. Coisa que pode não ser uma boa coisa. Deixa
assim.
Ao terminar a minha aventura de
engraxate por um dia, voltei pra casa desenxabido, joguei a caixa numa despensa
e até hoje nem meus sapatos eu engraxo. Embora essa caixa não mais exista, é na
lembrança dela que jogo tudo o que quero esquecer, só deixando sair como
palavras, porque a história precisa delas.

Nenhum comentário:
Postar um comentário