quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Uma cidade cheia de gente


A Rua Riachuelo é uma das mais movimentadas da cidade. Mas, muitos não sabem que ela já foi mais do que isso, um grande aglomerado de mercearias, um shopping de secos e molhados a céu aberto. Até a metade dos anos 70, esta rua era o início da estrada para Cascavel e, talvez por isso, os comerciantes preferiam ali se estabelecer. O Zé Japonês foi um dos primeiros a construir um salão de madeira e montar uma “venda”, que está no mesmo lugar até hoje, conservando as mesmas características do comércio de balcão, onde o “vendeiro” pega a lista de compras e vai juntando os itens nas prateleiras ou nas sacas espalhadas pelo chão. O Zé foi um dos campeões da venda de caderneta. Ele já faleceu, mas seu filho continua com a venda, no mesmo modelo que começou. Mas houve outros também importantes na Riachuelo. O Capixaba, na esquina de baixo, Geraldo Arroio, mais abaixo, a venda do Luis Rato na esquina com a Avenida Tupãssi e mais uns 10 outros merceeiros, estabelecidos na mesma época, como o Geraldo mineiro, seo Jaime, Seo Vitório, e seo germino. A rua chegou a comportar 13 mercearias na mesma época. E havia freguês para todos, pois tinha muita gente. Onde hoje estão os meios-fios, eram enormes filas de carroças estacionadas. No meio, um ou outro Jeep, ou uma perua Aero Willys. Carro tinha pouco, mas carroça e animais se misturavam aos montes com as pessoas. As famílias que moravam nos sítios vinha fazer compras e voltavam com as carroças cheias de mercadoria. Vinham cedo, passavam nas lojas de roupas, calçados, farmácias e todo tipo de comércio. Por último, iam para as vendas comprar comida, louças, panelas, fumo, corda, ferramentas, pregos, bebidas e os mais variados artigos de secos e molhados. Enquanto o vendeiro ia pegando as mercadorias listadas, a família enchia o bucho com um sanduíche de pão bengala recheado de mortadela, regado a uma tubaína gelada na geladeira tocada a querosene. Carroça cheia, buchos abastecidos, hora de pegar o caminho de volta pelas estradas estreitas, cheias de buraco e poeira. Muitas vezes debaixo de chuva e por cima de muito barro e lama do chão vermelho da terra que produzia hortelã, feijão e café. No Natal, o enfeite eram somente as pessoas fazendo compra, deixando parecer uma cidade inteira em festa. Algumas poucas lojas deixavam uma radiola tocando o único disco de música natalina que se conhecia por estas bandas, a Harpa de Luis Bordon, a mesma que também tocava várias vezes ao dia no serviço de alto falante da cidade, instalado em torre de madeira no Bar Tupãssi. Era um som que envolvia a todos num clima de alegria, era um Natal que não se vive mais. Não com aquela magia, num misto de pureza, simplicidade, ingenuidade, honestidade, bondade, simpatia e respeito pelo próximo. Não se falava em roubos, assassinatos e outros crimes, nem ladrão de galinha havia. Quando alguém perdia dinheiro na rua, fazia um anúncio no alto falante da cidade e logo aparecia alguém com o dinheiro encontrado, sem faltar um centavo. Coisa inimaginável para os dias de hoje Meu primeiro emprego foi em uma dessas vendas da Rua Riachuelo. Geraldo Arroio era o proprietário e deu a oportunidade a mim e ao amigo Gelásio. Claro que não deu certo, mas foi a primeira experiência de aprender a responsabilidade no trato com as pessoas. Aos 13 anos de idade a gente mais comia doce do que trabalhava. Naquele tempo, as mercearias vendiam de tudo. Até bacalhau, que não era tão caro como hoje, mas também não devia ser bacalhau de verdade. A maioria da freguesia vinha da roça, gente que plantava e colhia hortelã. A moeda era uma caderneta, onde se marcava os produtos vendidos para a soma no fim do mês ou a cada temporada. Algumas famílias só pagavam a conta no fim da safra ou uma vez por ano. Havia confiança e quase ninguém dava calote. Era difícil uma semana que não se vendia pelo menos uns cinco penicos. E não eram de plásticos. Fabricados em latão e banhados em louça, até poderiam ser confundidos hoje com panelas, não fossem as alças de caneca. Em casa, havia três. Me revoltava ouvir minha mãe dar a ordem de despejar os penicos na privada do fundo do quintal, todos os dias de manhã. Eram três viagens com o nariz tampado e a cara virada pra não ver o conteúdo. Um vez tropecei e caí com “tudo” na horta onde o caminho atravessava. Levei umas chineladas e fiquei de castigo, não por cair, mas por ter “adubado” os pés de alface. Minha primeira e única experiência de balconista me permitiu participar do maior movimento comercial que esse município já viu. Uma população de quase 140 mil habitantes fazia girar muito dinheiro na cidade. Era um tumulto organizado, onde se podia ver de tudo nas ruas. Sorveteiros se trombavam em dezenas com outras tantas dúzias de pipoqueiros, doceiros e gente vendendo salgados em cestas que carregavam nos braços ou em rodilhas na cabeça. Verdureiros tinham aos montes, com cestas ou em carrinhos, como fazia a Dona Mercedes, que levava uma horta inteira por toda a cidade. O marido, japonês, era quem cultivava as hortaliças. Era comum os vendedores de frangos vivos. Galinhas ou patos, amarrados pelos pés e pendurados em varas de madeiras, carregadas nas costas ou em bicicletas. Vendiam tudo, não sobrava nada. Vendedores de ovos batiam às portas, com cestos cheios. Também trocavam por mercadorias ou por serviços com os comerciantes. Mas ainda havia os padeiros que entregavam o pão em casa e as carroças dos bucheiros, um açougue ambulante. Não vi tudo, mas vi muito.

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