quinta-feira, 6 de outubro de 2022

De artistas a picaretas

1976

Nos meus tempos de menino, o caminho da volta da escola pela Avenida Tupãssi empoeirada tinha uma parada obrigatória todos os dias: A Farmácia Estrela do seo Ivo Müller e dona Dalva. Num dos cantos de entrada, uma vitrola daqueles tempos rodava sem parar um dos discos do humorista Barnabé. Decorei todas as suas piadas, que até hoje são repetidas por novos humoristas. Penso que o show de humor gratuito era uma estratégia para atrair a freguesia, que se juntava numa estreita faixa de calçada sem calçamento. Era terra mesmo. Os meninos se sentavam na soleira da porta do salão de madeira e todos riam com as trapalhadas do caipira que não nunca veio em Assis. Morreu cedo, em 1968, de ataque cardíaco, enquanto fazia show num circo. Um irmão dele deu sequência na carreira, mas não com a mesma graça e sucesso. Outros o imitaram, mas sem fazer rir como o original fazia. Um deles foi o chateaubriandense Agenor Barbosa, antes de adotar o nome artístico de Paulo de Paula, que fazia shows pela região  com o nome de Barnabézinho.

A Assis dos anos 60 e 70 era uma rota de artistas que se apresentavam no Oeste do Paraná. Por aqui, pernoitaram muitos nomes famosos nas pensões e hotéis simples de uma cidade que crescia sem parar, mas não tinha asfalto. A chuva e o barro seguravam os viajantes até por semanas. Muitos “medalhões” fizeram suas cantorias nos bares da cidade, de graça, tomando cachaça, enquanto a chuva caia. A zona do baixo meretrício, conhecida Casa das Primas, também era ponto dos artistas. Nem sempre para cantar. O antigo Bar Tupãssi e muitos outros foram palcos de Brasão e Brasãozinho, Liu e Léo, Tião carreiro e Pardinho, Pedro Bento e Zé da Estrada, Belmonte e Amaraí, Mococa e Moraci, Léo Canhoto e Robertinho, Milionário e Zé Rico e, até Teodoro, ainda sem o Sampaio.

Léo Canhoto e Robertinho fizeram um show em um circo armado no local onde hoje está a torre da Telepar. Ficou gente pra fora, tamanho o público que foi assistir à peça teatral da música “Jack, o matador”.

Tonico e Tinoco se apresentaram em outro circo, também no centro da cidade. Depois vieram em 1972, para a campanha política do Almério, num show para milhares de pessoas, que ficou na história de muita gente.

Boa parte das dezenas de artistas que passavam por “essas bandas” não tinha fama e nem era artista de verdade. A maioria fazia parte da turma de picaretas que rodava o Brasil fazendo show de rua ou dando calotes no comércio. A cada 15 dias tinha um “homem da cobra” vendendo remédios homeopáticos em praça pública. Com um microfone sujo e ensebado de cuspe, pendurado no pescoço, reunia gente chamando por um alto falante jogado no chão. Enquanto demonstrava um produto num vidro, prometendo “curar tudo”, batia com uma vareta numa caixa, dizendo que ali havia uma cobra sucuri de 10 metros, um peixe elétrico ou um jacaré do pantanal. A multidão curiosa esperava até o fim para ver a surpresa, enquanto um ou outro comprava o remedinho com cheiro de hortelã, que não prestava pra nada. Quando o público começava a esvaziar plateia, o homem que dizia ser representante de laboratórios tirava um lagarto da mala e garantia que era um legítimo filhote de crocodilo da Amazônia. Quando muito, mostrava um peixe elétrico que acendia uma lampadazinha na ponta de dois fios que ele encostava no pobre bichinho. E a plateia adorava aquilo. Coitado do peixe!

As rádios do interior sofreram muito com os picaretas do microfone que passaram por nossa história. Vinham de longe e ficavam alguns meses, tempo suficiente para comprar fiado no comércio e sumir do mapa para sempre. Anoiteciam e não amanheciam, deixando um rastro de contas a pagar, de boteco à loja de móveis, passando pelo hotel e a mercearia que ficavam a ver navios.

O primeiro exemplo foi o próprio gerente que inaugurou a rádio Jornal, em 1978. Um tal de Lima veio de Brasília, a Capital, e levou embora uma Brasília novinha, o carro. Carregou ainda na mudança a mobília toda de uma casa montada, comprada no crediário e garantido pelos donos da rádio, que, além de perderem o automóvel do ano, tiveram que pagar as lojas, o mercado e o aluguel do malandro que anoiteceu e não amanheceu.

Tem ainda a passagem de um conhecido locutor vozeirão, bom de microfone pra caramba, que se associou a outro picareta local, metido a cantor. Ambos “bolaram” um festival de calouros e no dia do show fugiram com a grana dos ingressos, assim que o salão paroquial lotou de gente.

Outro, muito bom noticiarista, veio de longe pra aplicar o velho golpe da pomadinha. Num vidrinho de remédio injetável, que recolhia no lixo de farmácias, ele colocava vaselina líquida e vendia a idosos como excitante sexual. Ele abordava os velhinhos (e alguns jovens), dizendo que o era só passar o remedinho no bilau e viver horas de prazer com o moral “alto”. Dezenas de trouxas acreditavam e o malandro vendi vaselina que nem água no deserto. Afinal, era um locutor da rádio que estava vendendo, palavra que tinha crédito. Pior é que ouvi depoimentos de que o negócio funcionava mesmo. E não adiantava dizer à vítima que o efeito era só psicológico.

Em fim de ano chovia locutor de tudo o que era canto vendendo mensagens de Natal. Os caras já traziam os textos prontos, gravados em um rolinho de fita de rolo, que só rodava na rádio e numa fitinha K7 para mostrar aos lojistas. Era difícil uma vítima que não comprava.

Quem pensa que os picaretas acabaram, engana-se. Mas isso é história pra outro dia.

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