sexta-feira, 29 de julho de 2022

Radialista já foi artista

*Antiga vila do Zé Lulu

O rádio já não é mais o mesmo, assim como os radialistas são simples mortais agora.

É, mas houve um tempo em que locutor de rádio era personalidade tão importante quanto cantores de sucesso ou artistas da televisão. Davam até autógrafos e não faltavam convites para almoços de domingos e festas todos os fins de semana. Sem contar que os mais conhecidos ganhavam bolos, e até leitoas, todas as semanas.
Perdi a conta de quantas vezes recebi pão caseiro, melancia, doces e outras coisas deliciosas. Mas não era só isso, de vez em quando, alguém mandava dinheiro nos envelopes com pedidos de músicas. Naquela época, eu fumava e o dinheiro do vício era bancado com as notas que vinham pelas cartas. “Vai cartinha cheirosa, no bico do beija-flor, vai dizer ao Clóvis de Almeida que me atenda por favor”, dizia a correspondência da ouvinte, acompanhada de uma nota de 10 contos. Era uma alegria. E a gente atendia com o maior carinho. Fazia feliz o ouvinte e garantia mais “déizão” na outra semana, além de dar o exemplo pra outros ouvintes.
Uma vez, me mandaram um panelão de arroz doce. Fiquei com medo que fosse feitiço e deixei que os colegas comessem, a rádio toda comeu, não morreu ninguém. Eu passei vontade e ainda tive que lavar a panela pra entregar à dona, que a mandou buscar no dia seguinte.
Não faltavam convites para futebol no interior do município. Todas as comunidades queriam a presença do time da rádio. E quase todos os fins de semana lá estávamos nós, um bando de pernas-de-pau disputando com o time da casa. O bom de tudo é que havia almoço e bebida, de graça, bancados pela comunidade que nos convidava. Era comida farta e da boa. Não tinha meia dúzia de latinhas não, eram caixa de cerveja pra gente se empanturrar junto com frango e leitoa assada. O povo era bão dimais!
Zé Lulu (foto), Encatado do Oeste, Nice, Bragantina, Azaury, Terra Nova, Rio Branco, Ramal Pimenta, Balú, Silveirópolis e todos as demais comunidades nos recebiam com muito carinho.
Nas segundas-feiras, os assuntos de todos os programas eram os comentários sobre o jogo e almoço do sábado anterior. Sempre tive a impressão que eles nos deixavam ganhar os jogos. É que se agente perdesse, nenhum locutor comentaria nada. Eram “alôs” que não acabavam mais nos programas do Ary Silvestre, Afonso Carlos, Zé Costa, Clóvis de Almeida, Barbosa Filho e Manoel Neves. Sem o contar o programa de esporte, onde a segunda era dedicada à festa do fim de semana. E era muito bom. Até o Abílio Borges falava do assunto na Hora da Ave Maria.
A gente não andava um passo na rua sem ser reconhecido. Certa vez, umas fãs quiseram rasgar minha camisa quando saí do Cine Avenida após apresentar um festival de calouros. Tive que ser acudido por outras pessoas que serviram de seguranças improvisadas.
Hoje, esse glamour não existe mais. Radialista é simples mortal e basta montar uma rádio web para ser radialista, virou carne de vaca e perdeu a graça, apesar de a profissão ser tão digna quanto antes.
Felizmente, ainda podemos perceber o reconhecimento de nosso trabalho por muitos ouvintes, que manifestam carinho todas as vezes que nos encontram, pelos quais serei eternamente grato.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Chiado que fez história

 

Hoje é muito fácil assistir à televisão. São várias as mídias que possibilitam acessos aos canais abertos e pagos. Além do sinal digital das antenas de retransmissores locais, contamos com as parabólicas que nos trazem diversos canais. Pelos sinais pagos e aplicativos comprados ou de graça, temos televisão no celular ou em modernos aparelhos de televisão chamados de smart-tv. Poucas pessoas não têm acesso à televisão.

Mas, quem viveu os anos de colonização do sertão paranaense sabe o que é não ter televisão ou, no máximo, uma imagem e som chiados, parecendo uma caixa de abelha. Era cena comum ver pessoas em cima de telhados, rodando antenas e gritando: “Agora pegou?”. E a resposta vinha de baixo: “Volta, volta, mais pra direita!”. E nada de pegar nada.

Boa parte colocava a antena da televisão num cano em pé na beira da janela. Um prego grande espetado num buraco do cano servia de manivela para girar a antena, enquanto se acompanhava na tela a melhor posição, com menos chuvisco.

Era o sinal da Televisão Tibagi, canal 11 de Apucarana, que chegava em Assis Chateaubriand bem fraquinho, depois de passar por outras repetidoras no meio do caminho.

A nossa repetidora era instalada em Jesuítas, por ser local mais alto. Meu pai trabalhou na construção da casinha do transmissor.

Em preto e branco, com fantasmas e pontinhos parecendo neve, era possível assistir à “Buzina do Chacrinha” e as novelas da Globo. Eu gostava mesmo era dos seriados que passavam nas tardes. Em casa não havia televisão, mas eu ia no meu tio Afonso Davanzo ou no bar do Luis Rato pra assistir Ivanhoé, O Túnel do Tempo e Perdidos no Espaço. Havia ainda os jornais da Tibagi, apresentado por Nelson Baltazar, um locutor vozeirão que balançava a cabeça conforme formava as frases. Era engraçado.

Em 1975, a Prefeitura de Cascavel construiu uma repetidora da Globo com uma maior potência. A partir de então, um sinal melhor vinha de lá, no canal 8, com imagens da TV Cultura de Maringá. Foi então que a Tibagi se despediu da região oeste.

Nesta época, um grupo formado por empresários e políticos de Assis mexiam os “pauzinhos” em Brasília para viabilizar uma emissora de rádio para Assis Chateaubriand. E a conquista veio naquele ano, quando o governo federal outorgou a Rádio Tupãssi, nome provisório da que seria a Rádio Jornal AM, três anos mais tarde. Uma conquista que não existe mais, assim como a TV Piquiri, outra grande luta jogada no lixo. Esse é o fim de tudo o que acaba em mãos de pessoas que não têm nenhuma afinidade com as conquistas alheias. O comprador de uma vaca de estimação só estimará o bichinho enquanto ela tiver leite pra dar. Quando as tetas secam, o matadouro é logo ali. Simples assim.

Por Clóvis de Almeida 2022

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Com “jeitinho” entraremos até no céu

Com tantas propagandas de vestibulares de faculdades neste meio de ano, me ocorreu uma pergunta: será que existe vestibular para entrar no céu? Fico aqui imaginado como seria uma prova de conhecimentos para ter acesso ao paraíso...

Tudo começaria com a inscrição, que provavelmente seria preenchida pela assessoria de São Pedro, o homem que guarda a chave de entrada. Como, presume-se, do outro lado não existe dinheiro, a garantia de participação nas provas poderia ser um número determinado de orações, que se faria de joelhos, ali, na fila. No caso de uma reza mais forte, haveria de troco uma foto do santinho do dia, quem sabe.

Na parte mais difícil, para responder as questões, a alma recém chegada deveria estar com as respostas na ponta da língua. Sem essa de acertar só a metade e já vai entrando. Nada disso! Só valeria cem por cento de acerto, ou como se diz: gabaritar.

As perguntas estariam todas relacionadas à vida do vestibulando e à sua estada aqui na terra. Todas as questões seriam respondidas com apenas duas alternativas, ou seja, sim ou não. Nada que ele não saiba, seria apenas uma questão de lembrar de todos os momentos vividos. Mentir não vale, pois cada prova é individual, em todos os sentidos. Você era bom? Dava esmolas? Matou? Roubava velhinhos? Olhou as pernas da vizinha? Ficava de olho no bumbum do padre? Roubou? Ficou anos sem fazer nada? Votou para o presidente errado? E por aí vai.

Na verdade, se assim fosse, na primeira pergunta o candidato já teria a certeza que seu destino seria o inferno.

Mas tem um porém: se no céu também tiver o jeitinho brasileiro, é melhor não fazer a prova. Depois a gente faz uma redação, uma entrevistazinha, paga a matrícula e pronto, entrada garantida.

Estranho? Não estranhe, é assim em muitas faculdades e com alguns cursos. O sujeito perdeu, ou finge que perdeu o vestibular, faz a tal redação e está dentro do curso, com os mesmos direitos daquele que se matou para não “zerar” em matemática, português ou outra matéria qualquer, daquelas provas que demoraram a tarde toda e muita “ralação”, até serem entregues na esperança de boas notas.

Acho que o vestibular do céu não aceitaria tamanha mamata que deixa de lado o esforço de tanta gente. Talvez seja por isso que, dizem, no céu só tem gente boa.

Sabemos que no vestibular não é certeza de estar na lista dos melhores, pois, “jogar no bicho” também vale e muita gente não precisaria nem de redação para ingressar em um curso universitário, porém, o que talvez alguns não entendam, é essa diferença nos quesitos de entrada. Não seria mais fácil exigir apenas a redação para todos? Ora, se em 30 linhas o candidato se mostra apto a ingressar na academia, o vestibular serve para provar o quê mesmo?

Confesso que não sei. Se tivessem alternativas, quem sabe, eu responderia.

Será que São Pedro aceitaria só uma redação. Como Deus é brasileiro, quero que a entrevista seja com ele, afinal, com o nosso “jeitinho” brasileiro a gente vai longe.

A utopia da inocência

 

Ninguém nasce do nada e, por menos que tenha significado, o ventre já é uma família, o começo de tudo.

Uma casa construída sobre a areia vai cair com certeza. Ao contrário, tudo o que cresce sobre bases sólidas tem mais chances de sobreviver aos vendavais que desviam o ser humano dos caminhos do bom-senso, justiça e solidariedade. Isso é o básico e todo mundo sabe, ou pelo menos deveria saber.

Vivemos cada vez mais reféns do medo de ser roubado, assaltado, agredido ou morto. Vivenciamos adolescentes caindo no mundo do crime, todos os dias. Tentar procurar as raízes dos problemas que afetam nossas crianças e jovens é chover no molhado.

São tantos os problemas e cada caso é um caso. Mas uma coisa pode se afirmar: Grande parte ou o todo dos males que levam à prática dos crimes feitos por menores de idade está na família.

É claro que um pai ou mãe não fica ensinando a vida criminosa aos filhos, mas os exemplos de desunião que muitos passam levam aos caminhos tortos. O abandono, o álcool, as brigas de casais, a fome e o desemprego desestruturam qualquer ambiente, levando crianças ao roubo, assalto, drogas e à prostituição.

Dizer que a maior fonte dessas sequelas está na distribuição desigual de rendas desse país é falar o óbvio, mas é ao mesmo tempo uma forma de lavar um pouco as mãos. Não falar do assunto é não só lavar as mãos como colocar a consciência de molho e fechar os olhos às crianças que pedem nas esquinas e aos milhares de meninos e meninas que fogem das escolas por não terem quem os obrigue a estudar.

Os fatos existem e é preciso encará-los de frente. Só análises não resolvem o medo de ser assaltado, roubado, invadido, ou quem sabe, morto. As leis são claras e precisas para preservar o menor de idade. Mas são quase nada na missão de promover a recuperação de criminosos, independente da idade.

É preciso que se pense logo em medidas que resolvam a questão da idade para o crime.  Se o menor tem força para roubar é sinal que é forte o suficiente para assumir a pena diante da sociedade que ele faz vítima.

Fazer cumprir as leis de hoje já não é suficiente diante do tamanho da causa. Em algum lugar deve existir uma solução. O que não pode continuar acontecendo é o cidadão se fechar em grades para não ser vítima de um perigo que se esconde nas mãos do direito de uma inocência que só existe no papel. Uma candura maquiada que esconde toda a verdade e os detalhes lapidados na culpa, conhecida nos exemplos da convivência do submundo que pode estar ao nosso lado. A falsa inocência, uma utopia legal.

·         Escrevi este texto há quase 15 anos. Estaria atual se o mundo não tivesse piorado.

·         Por Clóvis de Almeida 2009/2022

segunda-feira, 25 de julho de 2022

A leitura que não lemos hoje

O escritor irlandês Oscar Wilde disse que “a diferença entre a literatura e o jornalismo é que o jornalismo é ilegível e a literatura não é lida”. Me ocorreu uma teimosia interna entre os meus dois neurônios que ainda funcionam, que não se chamam Tico e Teco, porque não os batizei ainda. Poderiam ser Tom e Jerry, ou Bonnie e Clyde, conforme a hora e a ingenuidade ou violência das ideias. A discussão entre os dois foi para definir se a frase de Wilde ainda se aplica, uma vez que ele a citou há 150 anos.

Oscar Wilde era um gênio, conseguia ver quilômetros de anos à frente do que vivia, mas acho que ele não previu o advento da internet e nem das redes sociais, onde todo mundo se mete a fazer notícias, alguns dizendo que são jornalistas, quando não sabem a diferença entre o fake e o fato.

Wilde não imaginava que as redes sociais seriam povoadas por chuvaradas de “fontes” que se copiam, como vírus em expansão, fazendo com que o jornalismo se renda com um refém, buscando os holofotes da fama rápida que os cliques proporcionam, sem esmiuçar as informações recebidas para identificar pelo menos um pingo de verdade. Do jeito que vem, vai. Os likes e os compartilhamentos acabam sendo mais importantes do que um mínimo de verdade. É nesse arremedo de notícias que se destacam os chamados “faits divers”, como naquela “matéria” do Dr. Dráuzio Varela, onde ele abraça um estuprador preso, num grande exemplo da notícia grotesca e passageira.

Então, meus neurônio pagãos decidiram que o jornalismo, nos dias de hoje, é legível sim. Porém, sua leitura tem outra dinâmica, exigindo do leitor mais do que saber ler. Mais do que a leitura, ele precisa também ter a capacidade de análise e cruzamento de informações para um mínimo de checagem. Na menor hipótese de não ser verdade o que ele acaba de ler, precisa buscar no Google mais informações. Quase sempre encontra o desmentido, lhe abrindo os olhos para mais um fake news. Quantos fazem isso?

Assim sendo, muito do jornalismo que se faz hoje é legível, só não há garantia de que pode ser chamado de jornalismo.

Quanto à Literatura, Oscar continua sendo Oscar, um exagerado. É que, como dantes, há muitos leitores que primam pela qualidade do que escolhem para ler. Ocorre que esse é time que também gosta de privacidade e não fica publicando aos quatro ventos o que está lendo hoje ou qual livro terá na cabeceira amanhã. É uma questão mais fina, coisa que Wilde não ligava muito, pois o negócio dele era fazer barulho nas multidões. Era mestre em criar frases marcadas por ironia, sarcasmo e cinismo. Em seu romance “Retrato de Dorian Gray”, Oscar fala da arte, da vaidade e das manipulações humanas. Em “O Fantasma de Canterville”, critica o patriotismo da sociedade. Mas escreveu também contos infantis com lições de moral para crianças.
Em maio de 1895, após três julgamentos, foi condenado a dois anos de cadeia, com trabalhos forçados, por "cometer atos imorais com diversos rapazes".

(Clóvis de Almeida – 2010-2022)

domingo, 24 de julho de 2022

A eternidade guarda tudo o que fazemos

Tudo aquilo que somos não é absolutamente nada diante de um mundo que nos reserva pouca coisa no presente e as prateleiras da eternidade só guardam espaço para o que fazemos, de bom ou desprezível.

Nossos feitos não ficam velhos quando fazem marcas profundas no mundo em que vivemos, seja para grandes multidões ou a um mundinho pequeno e insignificante para a maioria, que só a nós diz respeito.

Eis aí o grande motivo para se marcar presença em cada passo que se vive. É possível escolher se queremos ser lembrados pelos castelos que ajudamos a erguer, semeando felicidades, ou se pelos escombros que colocamos abaixo, enterrando esperanças alheias.

A cada passo que damos, fazemos sulcar um rastro com nossas marcas, um carimbo que contém tudo aquilo que imprimimos com nossas ações. É como uma gota de água que se espatifa ao cair do telhado. Seu peso, por menor que seja, faz um vazio no poça d’água ao esparramar o volume que naquele espaço havia. Porém, não é só esse buraco que a goteira provoca. A gota se divide em milhões de gotículas para todos os lados, espargindo-se num spray que molha o redor, que varia conforme o volume de água espalhada.

Assim somos nós. Para cada palavra dada, um universo inteiro pode ser movimentado no espaço em que é ouvida. Pode ser para o bem ou para o mal, embora não percebamos, na maioria das vezes. Uma simples brincadeira pode provocar um turbilhão de ofensas para uma vida toda. É preciso cuidado com as palavras, pois elas podem ferir mais do que uma lâmina afiada e, uma vez emanada, pode ser impossível de apagar, mesmo porque, palavras ditas não se apagam, o máximo que podemos fazer é esquecer que as ditamos. Porém, o problema já não somos mais nós, mas sim quem as ouviu. Nem sempre desculpas diminuem o som e o peso de algo dito.

Alguém já disse que uma palavra escrita pode ser passageira, mas uma besteira dita é eterna, porque faz eco no universo, se espalhando e se multiplicando como a gota que cai do telhado. Vai mudando de forma e diminuído o tamanho, mas não deixa de ser besteira que ofende.

Clóvis de Almeida 2022

sábado, 23 de julho de 2022

Os meus tempos dos gibis

As crianças de hoje têm um universo fantástico de informações e passatempo, como, televisão, vídeo game, telefone celular, computadores e processadores digitais de informação com textos, imagens de todos os tipos e sons de primeira qualidade. O mundo dos livros e histórias em quadrinhos é até desconhecido da maioria infantil e juvenil.
Nos anos 60 e 70, a gente mergulhava nos gibis de HQ, onde a diversão, fantasia e cultura se faziam com os personagens Disney, Marvel e muitos outros. Nossos heróis nada tinham a ver com os games barulhentos de hoje, imperava o silêncio dos balõezinhos de vozes, nos textos que davam vida ao Tarzan, Superman, Mickey, Pateta, Bolinha, Tex e muitos outros personagens que povoavam nossa imaginação de meninos e meninas. A gente colecionava uma imensidão de revistinhas coloridas ou em preto e branco, além dos “bolsilivros” de faroeste, guerras e detetives.
Aos domingos, a matinê do Cine Avenida era o palco de uma feira que não se vê mais: a troca de gibis. Com um pacote de revistas debaixo do braço, lá íamos nós fazer a troca com outros colecionadores. Um Tio Patinhas valia dois Pato Donald. Um gibi do Superman valia tanto quanto as 120 páginas do Michey Special. O balcãozinho da bilheteria de ingressos do cinema era disputado para realizar as trocas e, no tempo de figurinhas, servia como mesa para o jogo de abafa, que dizíamos “bafo”. Um punhado de figuras que eram desviradas com uma palmada de mão em concha. Ganhava quem desvirava a maior quantidade delas e a brincadeira acabava quando Dona Maria, ou seo Naboro, os donos do cinema, abriam a pequena janela para a venda de ingressos.
Impossível esquecer aquele cheiro de pipocas e o perfume doce da baleira no hall de entrada. Balas Toffe, Sete Bello e as variedades em hortelã coloriam a vitrine toda de vidro.
Toca uma música na orquestra de Paul Mauriat e abrem-se as cortinas da tela, ao mesmo tempo em que se apagavam as luzes. Ia começar o filme, num silêncio total, mesmo com a sala cheia de espectadores.
Moleque é mesmo coisa impossível. Quando terminava o filme, a gente fingia que estava dormindo na cadeira, para assistir a última sessão da tarde, de graça. Dona Maria fazia a inspeção e passava devagarzinho, como se não quisesse nos acordar, subindo de volta pelo corredor, com passos de quem fingia acreditar na nossa mentirinha. E assim a gente, uns três ou quatro garotos, assistia ao filme seguinte, pensando que havia enganado mais uma vez a japonesa.
Alguns anos mais tarde, o melhor lugar do Cine Avenida era o “inferninho”, elevado ao lado das máquinas de passar filme, com cadeiras reservadas aos namorados. Ali era o verdadeiro escurinho do cinema. Esses reservados ainda existem nos cinemas de hoje, mas não com o glamour daquela época.
Muitas vezes a molecada se sentava no inferninho para jogar balas ou chicletes na cabeça de quem estava embaixo. Alguns adultos também faziam isso.
Quando o filme acabava era hora de ir pra casa ler os gibis que havíamos trocado antes das sessões. A luz da lamparina era testemunha de que só se dormia depois de virar a última página, com a historinha que se entremeava com as imagens do filme de bang-bang que se vira à tarde, no cinema que anos depois virou sapataria.
//// Por Clóvis de Almeida ////
Foto: Baleira do Cine Avenida - Ao centro, dona Maria com os filhos.

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Verdades e mentiras que fazem história

 

Tem muita gente que não conhece a história da fábrica de papel que o ex-prefeito Koite Dodo começou a construir no Rio Alívio. As bases de concreto ainda estão lá, em ruínas, abandonadas.
Em entrevista para o professor Laércio Souto Maior, Rudy Alvarez disse que seu adversário político nos anos 60, o farmacêutico Ivo Muller, espalhou boatos de que a barragem da usina elétrica no rio Alívio iria ruir por deficiência de construção. Tal conversa teria se originado porque a candidatura a prefeito de Rudy teria crescido muito, me contou o ex-prefeito numa longa entrevista, em 2007. A verdade é que Rudy se elegeu e a barragem está segurando águas do rio até hoje.
Outra polêmica é sobre os jagunços que rondavam a região. Rudy me garantiu que os homens a quem se chamou de jagunços eram apenas “guardas florestais”, que “guardavam” as propriedades em colonização, e que nunca mataram ninguém. Por outro lado, a história de um tal pistoleiro “Ferreirinha” é comentada até hoje.
O jornal O Paraná, em outubro de 1980, publicou em tom de deboche: “Assis Chateaubriand é mesmo uma cidade fadada ao anedotário nacional, apresentando a cada dia, novos e mitológicos fatos para reforçar o já rico folclore do oeste”. A menção se devia a dois fatos que realmente viraram piadas, de nível nacional. Já como repórter de rádio, tive a oportunidade de acompanhar e relatar aos ouvintes da época as duas histórias. A primeira foi a suposta aparição de uma santa milagrosa no Patrimônio Nice e a outra, o encontro da “mãe” da apresentadora Hebe Carmargo, que “vivia” num casebre, no Distrito de Encantado D'Oeste. Os dois casos eram mentiras. A família das garotas que diziam ver a santa confessou que era mentira e, Hebe Camargo fez questão de mostrar que a verdadeira mãe dela nada tinha a ver com a senhora do Paraná.
“O Paraná” também citou Assis Chateaubriand por uma grande polêmica que se fez em torno do desmembramento do entreposto da Coopervale, em 1986. O que não se efetivou, apesar da movimentação de alguns agricultores e políticos da época.
Dois outros assuntos também abordados na mesma edição de O Paraná fazem parte da lista de fatos pitorescos, para não dizer lamentáveis. Um, é a fábrica de papel abandonada no auge da fabricação de celulose, e o cinema que nunca inaugurou, na Praça Nossa Senhora do Carmo. As duas obras mantém seus esqueletos a céu aberto.
Muitos se lembram da história de uma tal fábrica de óleo de soja, a Pacaembu, que deveria ter sido instalada em Assis, mas foi para Cascavel. Dizem que, por falta de apoio político. Será verdade?
Outros mistérios povoam a imaginação dos mais antigos, como os incêndios da Rodoviária, na Avenida Irene Monarim, e da Câmara Municipal, no antigo prédio de madeira que queimou todo.
Vez por outra, alguém ressuscita uma velha piadinha que tomou proporções indigestas sobre a vida da cidade, no final do anos 80, quando Assis Chateaubriand foi apelidada de “cidade da latinha”. A menção fazia gozação sobre as empresas que tinham ido embora do município, num trocadilho com o verbo ‘ter’, “lá tinha as lojas HM, lá tinha Arapuã, lá tinha os bancos Noroeste, Real, Unibanco, lá tinha a Receita Federal, lá tinha a Receita Estadual, lá tinha fábricas de papel e de palmitos, lá tinha seis hospitais, lá tinha 130 mil habitantes” e por aí afora. Lamentavelmente é tudo verdade, tinha mesmo. Mas muitas empresas novas vieram e as que sobreviveram ao tempo ficaram firmes e sólidas, mantendo o pólo comercial da região.
Quem sabe, com a vinda da Frimesa a história se encarregue de apagar as memórias de latinha.
///// Por Clóvis de Almeida - 2009/2022 /////
Foto - Entrada do túnel abandonado nas margens do Rio Alívio.
Ele tem 100 metros de extensão, todo feito em ferro e concreto. Seria a base de uma fábrica de papel, que funcionou até 1977

domingo, 17 de julho de 2022

Vai graxa aí, freguesia?

Um dos comércios que mais havia em Assis nos 60 era pensão. Casas, salões e até sobrados, construídos em madeira, com vários quartos, davam pousada aos milhares de aventureiros e compradores de terras que vinham para a chamada última fronteira agrícola do Paraná. Chegavam de jipe, caminhão, peruas ou até em lombo de burros, como é caso de alguns pioneiros que vieram da região de Londrina, Paranavaí e Maringá.

Nas pensões, todos tinham abrigo e comida farta, vendidos, é claro. A maioria dos negócios começavam ali e terminavam nos loteamentos, urbanos ou rurais, que estavam sendo abertos. Ninguém sabia o que era corretor de imóveis, mas sim "picareta", como esses eram chamados, havia centenas.

Os taxistas tomavam o porre de ganhar dinheiro transportando esse povo para conhecer sítios pelo interior do município, que era muito grande. Começava no vilarejo de Terra Nova e terminava no povoado de Brasiliana, hoje distrito de Tupãssi. Os mais velhos dizem até hoje que, naquela época, corria dinheiro que nem água. E corria mesmo.

Um dos meus sonhos daqueles dias era ser engraxate. Achava lindo, uma caixa de madeira nas costas, as mãos sujas de graxa e o toc-toc da escova na madeira, avisando para o freguês trocar de pé, ou que os sapatos estavam brilhando. Um sonho que durou somente um dia.

De tanto pedir a meu pai, ele fez uma caixa de engraxar. Linda, pintada e leve. Com os apetrechos já dentro, treinei na noite anterior umas escovadas no sapato dele. O mais difícil foi aprender o batuque com o pano de dar lustro. O piá da esquina tocava até samba no sapato com o pano dele. Dava até uns repiques que estalavam no ar. Aprendi também, meia boca, mas aprendi.

Na manhã seguinte, lá estava eu com a caixa nas costas, no meio da avenida, em frente a uma das pensões mais movimentadas da cidade.

Bom ouvinte e observador, já havia aprendido há tempos como os engraxates conquistavam o freguês.

— Vai graxa aí, freguesia? - Perguntei ao senhor gordão, vestido de branco e com um chapéu de rico.

Encostado na parede de madeira da pensão e sem perguntar quanto era, ele ameaçou esticar a perna, ao que eu completei colocando a caixa no chão, acomodando um dos pés com sapatos pretos do primeiro cliente.

Tirei a poeira com a escova novinha e abri a lata de graxa. Decepção. Minha mãe não comprara uma graxa nova, me deu a lata pela metade que meu pai usava em suas botinas. Pior, a cera estava dura. A lata havia ficado aberta por dias.

Não consegui passar sequer uma borrada de graxa no sapato do gordão, que me atingiu em cheio com um olhar de reprovação, dizendo uma frase que só muitos anos depois eu consegui entender o que ele quis dizer: Quem não tem competência não se estabelece.

Ainda não sei se a lição me serviu para alguma coisa na prática, pois, muitas outras vezes dei com os burros n'água por não planejar direito o dia seguinte. Mas, na teoria, ficou a lição de que nada se faz sem planejamento. Se um dia vai servir, eu não sei. Tem gente que apanha e não aprende nunca. Talvez seja o cerne da essência e, mudar implique em ser outra pessoa. Coisa que pode não ser uma boa coisa. Deixa assim.

Ao terminar a minha aventura de engraxate por um dia, voltei pra casa desenxabido, joguei a caixa numa despensa e até hoje nem meus sapatos eu engraxo. Embora essa caixa não mais exista, é na lembrança dela que jogo tudo o que quero esquecer, só deixando sair como palavras, porque a história precisa delas.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Copiar e colar é mais fácil

 

Os jovens deveriam agradecer todos os dias a invenção da internet. A maioria já nasceu com ela e não consegue imaginar como é viver sem esse milagre do mundo moderno. Quando a gente cresce com a tecnologia do lado é impossível mensurar a real importância dela.

Quem nunca estudou sob a luz de uma lamparina nunca saberá como é a alegria de ver a luz elétrica se acender pela primeira vez na cozinha de sua casa. Quem já nasceu numa casa com telefone ou tinha ele no orelhão da esquina não imagina o que é ouvi-lo tocar pela primeira vez somente depois de adulto. Só mesmo quem fez força no sarilho de um poço para tirar água é que sabe o real valor de uma torneira em casa.

Não existe presente sem passado e nem futuro sem presente. Isso, todos sabemos, mas o que nem todos valorizam é o trabalho que a humanidade faz para fazer o hoje e o amanhã. Nada sai do nada e tudo se modifica, se transforma. O que é novo agora será velho daqui a pouco. O jovem de hoje será um ancião ultrapassado em poucos anos. Tem gente que não se dá conta disso. O mundo é mundo rápido, tudo acontece sem que nos apercebamos.

A internet chegou como uma janela escancarada para o universo inteiro. Uma fonte inesgotável de saber que se amplia a cada segundo, com trilhões de informações e saberes, impossíveis de serem calculadas.

E Google? Ah esse Google... Fonte espetacular que, se bem usada, torna-se a melhor ferramenta cultural que o mundo já viu. Ele responde a tudo e a todos. Raramente deixa alguém sem uma resposta. Às vezes, nem clara, nem objetiva, mas responde. É um senhor sabe-tudo, como o pai da gente, quando somos crianças, mas com a diferença de que o Google sabe tudo mesmo!

Essa enciclopédia, dicionário, consultor, médico, psiquiatra e outras coisas virtuais, é aquilo que chamamos de "uma mão na roda", quando necessitamos de qualquer tipo de informação. Mas pode ser também uma armadilha quando usada indevidamente.

Qualquer pessoa pode ter um parecer, um conhecimento, um trabalho, uma foto ou qualquer informação publicados na internet. De graça. Por isso, tem gente que acha que pode pegar para si, como se fosse dona, sem sequer citar a fonte. Tem uns que até assinam autoria, gabando-se de um feito alheio.

Esse barbarismo com a criação de outrem chega a ponto de copiar trabalhos acadêmicos inteiros, matérias jornalísticas em partes ou na totalidade e até, pasmem, editoriais de jornais, um artigo que jamais poderia ser surrupiado, pois ele é a opinião do jornal. Quem copia opinião é porque não tem uma própria e nem sequer possui identidade. É um absurdo e, como tal, inaceitável.

A ousadia calhorda, ignóbil e covarde chega a ponto de usar desse expediente para publicar na imprensa, trabalhos que alguém dedicou horas, debruçado sobre um teclado, imprimindo conhecimentos adquiridos ao longo do tempo, com estudo e dedicação.

Talento não se compra, não se acha na esquina nem no lixo. Talento vem de berço e faz parte da alma. Um verdadeiro presente de Deus que se lapida praticando, sem ter que roubar o suor de ninguém.

Como na parábola de Jesus em Mateus, até os dotados de poucos "talentos" [dinheiro ou dom?] devem produzir e devolver mais do que receberam. Mas a falta de criatividade e preguiça não mudou nos últimos dois mil anos.

Copiar e colar é muito fácil, mas como se trata de uma mentira, tem pernas curtas. Um passo hoje e outro amanhã são só prenúncios de que o escorregão vai chegar, deixando à mostra a falta de escrúpulos de um preguiçoso que acha melhor copiar do que criar. Ou, no mínimo, vai mostrar a incompetência de alguém que entra em um meio só porque acha bonito.


quinta-feira, 14 de julho de 2022

Passa amanhã que eu pago

 

A inadimplência do comércio é sempre uma das grandes preocupações dos lojistas. Em época de festa o problema aumenta, pois as pessoas gostam de ficar bonitas, bem vestidas, comer um pouco melhor e divertir-se também, afinal, ninguém é de ferro. Na hora de pagar as suaves prestações mensais é que a onça bebe água e o lojista fica a ver navios. E não adianta cobrar. Tem gente que se esconde em baixo da cama e manda dizer que não está ou que não mora mais ali.
É irresistível ver na vitrine aquele sapato, calça, vestido, bolsa ou a blusinha com descontos especiais. No fim de 15 minutos de compra tem-se uma sacola de ofertas que vão para a caderneta pra nunca mais serem pagas. E o pior é que o vendedor, na maioria das vezes, sabe disso. E por que vende então?
"Olha que moça bonita, mais cheia de graça". Linda, mas embrulhada com vários carnês de prestações. A blusa de grife é da butique da esquina, calça de marca famosa, sapato da liquidação de verão, bolsa Louis Vuitton no carnezinho e a calcinha comprada da moça que vende roupas em casa. Tudo fiado, até o penteado e o corte de cabelo feitos no salão do bairro. As unhas, feitas pela prima, pra pagar com lavagem de roupa. Até nisso ela vai dar o cano.
Hora de sair à noite. No bolso da calça Armani ou da blusa Colcci, uma nota de dez “pilas” pra tomar duas latinhas com a colega que traja um vestido vermelho encarnado, comprado no Shopping de Toledo, em cinco pagamentos, com cheques da patroa, que também compra e não paga. Cinco chiquitas que vão voltar do banco nos próximos meses.
Ao longe, surgem os dois bonitões que vão ficar com as duas gatinhas até amanhecer o dia. Eles já tomaram três rabos de galo cada um e deram um "tapa" no potinho de pinga fofa-toba do amigo que veio pra festa com eles, no mesmo busão.
Na segunda-feira a vida continua. Chegam os boletos na loja e o gerente se descabela com o caixa baixo. O fornecedor quer dinheiro e o cobrador liga pra saber quando vai receber. A culpa das notinhas do fiado acaba sendo da vendedora que vendeu sem autorização. Coitada! Só faz o que patrão permite.
Enquanto isso, a moça bonita já pensa no próximo fim de semana. Pega o celular que comprou sem entrada e ainda não pagou a terceira prestação vencida. “Alô, Zildinha, vamos na balada sábado? Eu te empresto minha saia da Daslu Jeans. Sábado vou comprar outra na loja nova que abriu. Eles estão em promoção de inauguração e fazem em dez vezes no crediário, sem entrada e sem cadastro”.
É mais um que vai perder.
Para a nossa moça bonita tudo é festa! As contas que se danem.


(por Clóvis de Almeida)

terça-feira, 12 de julho de 2022

Quando as letras eram pesadas

Duas toneladas. Era o peso da máquina de escrever que se usava em jornais até o fim da década de 1970. Quem pensa que é um exagero ou mentira de pescador engana-se. Não estou falando da máquina do redator, mas da que fazia as bases de impressão, os chamados lingotes de escrita. Eram barras de uma liga de chumbo, estanho e antimônio, de várias medidas, que compunham apenas uma linha de coluna, pesando até 200 gramas, a mais longa. Linotipo é nome do trambolho, que hoje é peça de museu.

Tive a oportunidade, pra mim uma satisfação, de trabalhar numa dessas máquinas, quando ingressei no meio de imprensa. Era 1976 e o mundo da impressão gráfica já havia tido uma gigante revolução, mas os jornais do interior ainda utilizavam equipamentos fabricados 50 anos antes.
Os lingotes nasciam a partir de uma caldeira que derretia a liga, feitos de matéria prima nova ou das barras já usadas. Ficava ao lado esquerdo do operador, na base da perna. A alta temperatura “cozinhava” a gente. O barulho do motor que redistribuía as fontes de letras, feitas em latão, deixava os ouvidos doendo e a cabeça zunindo, ao final de um dia de trabalho.
Por vários anos montei milhares de páginas com o pesado material. Eram quarenta quilos cada uma. As fotos pesavam menos. Chamavam-se clichés, uma chapa de alumínio colada numa base de madeira. A impressora era ainda mais pesada que a linotipo. Três toneladas, no mínimo. O impressor trabalhava em cima dela, quase como num trator, passando folha por folha.
O vai e vem do carrinho de impressão produzia um barulho muito grande. Maior ainda era a vibração se espalhando pelo chão e incomodando a vizinhança que dormia na madrugada, enquanto o jornal era impresso.
Era muito trabalhoso produzir um jornal naquela época, por isso a maioria dos jornais do interior só circulava a cada 15 dias, ou no máximo uma vez por semana.
Era comum a gente almoçar e jantar na oficina do jornal durante a produção das edições especiais, com números de páginas além do normal. Geralmente uma marmita acompanhada de um refrigerante. Nas madrugadas, o editor-chefe chegava com sanduíches de carne e uma Coca-Cola pra cada um da equipe em serviço. A Coca era pra tirar o sono, dizia ele. Até hoje, tenho saudade daquelas “farofadas” e nunca mais se fez refrigerantes tão saborosos. Era o momento. Bons tempos de aprendizado, de amizade e de juventude.
Não bastasse a trabalheira de uma semana inteira na lida da produção, lá íamos nós, pessoal da redação e da gráfica, distribuir o jornal “quentinho”, nas madrugadas do sábado. Era um prazer indescritível entregar nas mãos dos leitores um produto feito com tanta dedicação e carinho. Era como mostrar um filho com o orgulho de um pai que diz: Olha o que nós fizemos!
Hoje, temos computadores que facilitam tudo, mas, o mais importante é a bagagem que cada profissional trás na mala de experiências, novas ou velhas. Sem isso, o computador só serve para fazer cópias de quem tem história pra contar.
(Clóvis de Almeida)

segunda-feira, 11 de julho de 2022

O cliente sempre tem razão

Cliente sempre tem razão. Munícipes também.

Governos, federal e estadual, prefeituras, entidades de classe, públicas ou particulares, investem muito em capacitação dos profissionais que atuam em todos os setores de atividades. É uma prática que tem se intensificado nos últimos anos, uma prova de que o ser humano passou a ser visto como alguém que move as engrenagens, e não apenas como uma simples peça que pode ser substituída a qualquer momento, por outra igual.
Porém, o que se observa é que essas capacitações, através de cursos ou palestras, são oferecidas em grande volume nas áreas do conhecimento prático de cada profissão e raramente abordam temas que se aparentam simples, mas são tão complexos quanto uma delicada cirurgia médica, reservadas as devidas proporções.
Não pode ser considerado simples o atendimento que um funcionário público presta no balcão de um departamento burocrático ou na emergência de um posto de saúde. Nesses locais, os munícipes comparecem a fim de resolverem seus problemas e o mínimo que esperam é ser bem recebidos.
Mas não é o que acontece em muitos balcões da vida, todos os dias, onde pessoas são maltratadas por gente que se acha no direito de pensar que pode tudo apenas porque tenta se escudar por um concurso público ou pela indicação de alguém que o colocou na vaga de emprego que deveria ser ocupada por alguém mais capacitado, ou, no mínimo, mais educado.
É comum observar pessoas incumbidas de atender gente, de forma nada adequada. Não é preciso se “reganhar”, mas nada justifica o mau-humor, com cara de quem está com raiva do mundo. Nem é preciso sorrir, mas é necessário demonstrar interesse no que as pessoas buscam. Há quem nem o ‘bom dia’ do cumprimento responde, num total exemplo de pouco caso.
Em alguns departamentos públicos, gente que deveria estar pronta para resolver problemas passa o tempo todo olhando e teclando no celular, como se o assunto fizesse parte do trabalho, quando não passa de bobagens e os famosos “cacacás”, que só interessam aos gazeteiros de plantão.
As empresas particulares também precisam se vacinar contra a praga do funcionário que espanta freguesia. Já não há mais espaço para as famosas perguntas cretinas de alguns vendedores que insistem no “o senhor queria alguma coisa?”.
É preciso investir mais em capacitação pessoal interior, aquela que faz despertar no sujeito até a educação que ele nunca teve. É necessário mostrar que o mundo é feito de pessoa para pessoas e atender bem é fundamental para justificar o salário que cai na conta a cada fim de mês.
A lenda é clara: Regra 01 - O cliente sempre tem razão.
Regra 02 - Se alguma vez o cliente estiver errado, releia a Regra 01.

domingo, 10 de julho de 2022

Uma cidade cheia de gente


A Rua Riachuelo é uma das mais movimentadas da cidade. Mas, muitos não sabem que ela já foi mais do que isso, um grande aglomerado de mercearias, um shopping de secos e molhados a céu aberto. Até a metade dos anos 70, aquela rua era o início da estrada para Cascavel e, talvez por isso, os comerciantes preferiam ali se estabelecer.

O Zé Japonês foi um dos primeiros a construir um salão de madeira e montar uma “venda”. Está no mesmo lugar até hoje, conservando as mesmas características do comércio de balcão, onde o “vendeiro” pega a lista de compras e vai juntando os itens nas prateleiras ou nas sacas espalhadas pelo chão.
O Zé foi um dos campeões da venda de caderneta. Mas houve outros também importantes na Riachuelo. O Capixaba, na esquina de baixo, Geraldo Arroio, mais abaixo, e mais uns 10 outros merceeiros, estabelecidos ao mesmo tempo. A rua chegou a comportar 13 mercearias na mesma época. E havia freguês para todos.
Onde hoje estão os meios-fios, eram enormes filas de carroças estacionadas. No meio, um ou outro Jeep, ou uma perua Aero Willys.
Meu primeiro emprego foi em uma dessas vendas. Geraldo Arroio era o proprietário e deu a oportunidade a mim e ao amigo Gelásio. Claro que não deu certo, mas foi a primeira experiência de aprender a responsabilidade no trato com as pessoas. Aos 11 anos de idade a gente mais comia doce do que trabalhava.
Naquele tempo, as mercearias vendiam de tudo. Até bacalhau, que não era tão caro como hoje. A maioria da freguesia vinha da roça, gente que plantava e colhia hortelã. A moeda era uma caderneta, onde se marcava os produtos vendidos para a soma no fim do mês ou a cada temporada. Algumas famílias só pagavam a conta no fim da safra ou uma vez por ano. Havia confiança e quase ninguém dava calote.
Era difícil uma semana que não se vendia pelo menos uns cinco penicos. E não eram de plásticos. Fabricados em latão e banhados em louça, até poderiam ser confundidos hoje com panelas, não fossem as alças de caneca. Em casa, havia três. Me revoltava ouvir minha mãe dar a ordem de despejar os penicos na privada do fundo do quintal, todos os dias de manhã. Eram três viagens com o nariz tampado e a cara virada pra não ver o conteúdo. Um vez tropecei e caí com “tudo” na horta onde o caminho atravessava. Levei umas chineladas e fiquei de castigo, não por cair, mas por ter “adubado” os pés de alface.
Minha primeira e única experiência de balconista me permitiu participar do maior movimento comercial que esse município já viu. Uma população de quase 150 mil habitantes fazia girar muito dinheiro na cidade. Era um tumulto organizado, onde se podia ver de tudo nas ruas. Sorveteiros se trombavam em dezenas com outras tantas dúzias de pipoqueiros, doceiros e gente vendendo salgados em cestas que carregavam nos braços ou em rodilhas na cabeça. Verdureiros tinham aos montes, com cestas ou em carrinhos, como fazia a Dona Mercedes, que levava uma horta inteira por toda a cidade. O marido, japonês, era quem cultivava as hortaliças. Era comum os vendedores de frangos vivos. Galinhas ou patos, amarrados pelos pés e pendurados em varas de madeiras, carregadas nas costas ou em bicicletas. Vendiam tudo, não sobrava nada. Vendedores de ovos batiam às portas, com cestos cheios. Também trocavam por mercadorias ou por serviços com os comerciantes.
Mas ainda haviam os padeiros que entregavam o pão em casa e as carroças dos bucheiros, um açougue ambulante.
Não vi tudo, mas vi muito. Disso eu falo outro dia.

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Peito aberto: minha cirurgia no coração


O objetivo desta crônica, base de um vídeo, é agradecer publicamente o trabalho e dedicação do Dr. Marcelo Pandolfo e toda sua equipe no hospital do Coração de Cascavel (Hospital Nossa Senhora da Salete) Paraná, quando da minha cirurgia cardíaca, realizada em junho de 2022.

Da mesma forma, contar como foi a minha experiência ao passar por essa chamada “operação de ponte de safena”, para que possa servir de informação às pessoas que estão se preparando para o mesmo tipo de cirurgia.

*Assista ao vídeo*
*O texto continua abaixo*

Antes de ser operado, assisti à alguns vídeos com o mesmo tema, feito por pessoas que também fizeram a mesma intervenção. Achei muito importante, como os vídeos do gaúcho do canal Ecoesporte, no Youtube, que já conta dois anos de operado e uma série de vídeos contando sua recuperação ao longo do tempo.

Como, cada caso é um caso, resolvi contar como foi comigo, porque são muitos os detalhes e intercorrências que variam de paciente para paciente. Assim, espero que a minha experiência possa ajudar alguém a ter mais paciência para ser operado e aguentar o tranco depois da operação, como me ajudou o gaúcho. O link do canal dele está na descrição do meu vídeo, no Youtube.

Há tempos eu vinha sentindo dores no peito ao caminhar, seguidas de apertos e como se estivesse queimando. Essas dores eram centralizadas no tórax, ou acima, perto dos ombros, ora de um lado, ora de outro. Ao caminhar, sentia muito cansaço.

Ao me consultar com um cardiologista, Dr. Celso Violin, foi realizado um eletrocardiograma e um eco cardiograma. Pelos dois exames, Dr. Celso concluiu que precisa de mais informações e me pediu que fizesse o exame da esteira

Na realização, eu teria que caminhar numa esteira por 30 minutos. Aguentei somente três minutos. Pedi para parar porque não aguentava de dor e queimação no centro do peito.

Com isso, fui encaminhado para o Dr. Marcelo Pandolfo, em Cascavel-PR, que me enviou para o exame de cateterismo.

Caiu como uma bomba no meu colo a conclusão desse exame e o anúncio do médico, ao afirmar que, primeiro, eu teria que ser operado e, segundo, que eu havia tido um enfarto do miocárdio. Tive, mas não sabia até então. Até hoje fico a pensar em quando é que pode ter acontecido. Relacionei alguns episódios de angina, dor no peito e queimação, mas não cheguei a nenhuma data específica. Pode ter sido um dia que, no meio da caminhada tive que parar e me sentar embaixo de uma árvore, até passar uma forte dor no peito. Pode ter sido ali.

Assim, meu toráx seria aberto para uma cirurgia no coração: o médico, Dr. Marcelo e sua equipe fariam em mim uma ponte mamária, semelhante à conhecida ponte de safena.

Eu estava com uma coronária entupida, que não permitia a colocação de stent, a famosa molinha que dilata o local entupido para a passagem do fluxo sanguíneo. Era uma oclusão total da artéria descendente anterior. Conforme o laudo do cateterismo, havia ainda uma outras 3 artéria que apresentavam irregularidades parietais.

Bem, a solução para a artéria entupida era abrir o tórax para fazer o desvio do sangue, com uma ponte feita com veia – safena, mamária ou radial. Fui informado que a ponte mamária seria mais indicada e que dura por mais tempo, além de ser mais forte que a safena.

Para entender melhor, nesse tipo de cirurgia, se for uma veia da coxa e perna, chamada de veia safena, chamamos de ponte safena. Se for uma artéria do tórax chamada artéria mamária interna, chamamos de ponte mamária e se for utilizada uma artéria do antebraço chamada artéria radial, é então ponte radial.

No hospital em que eu fui operado, havia inúmeros outros pacientes com o mesmo tipo de cirurgia. Eu percebi que, na ponte de safena, os pacientes reclamavam um pouco de dores nas pernas, no local onde fora retirada a veia safena. E eles caminhavam com um pouco mais de dificuldade pelos corredores do hospital. Como não tive essa intervenção de retirada de veias nas pernas, eu caminhei mais cedo e com firmeza normal.

A minha cirurgia estava marcada para o dia 14 de junho/22. Porém, não foi possível por falta de vaga na UTI, em razão de uma emergência surgida no hospital. Ficou então para a semana seguinte, uma segunda feira, dia 20.

Assim, fiquei uma semana no hospital, sem fazer nada, só comendo, bebendo e dormindo para não perder a vaga de UTI, que é obrigatoriedade após a cirurgia.

Foi ótimo ter ficado lá esse período antes da operação, pois, no ambiente onde só se falava desse assunto, com dezenas de pacientes com o mesmo problema, fui observando gente voltar da UTI já operado e outros que se convalesciam esperando a hora de voltar pra casa. Foi uma escola de preparação psicológica muito grande.

Isso, porque o medo da cirurgia é grande, pelo menos para mim foi. O medo de não voltar da anestesia faz a gente pensar na possibilidade iminente da morte. Mas, entreguei na mão de Deus.

Na hora em que eu estava sendo levado na maca, subindo a rampa de acesso à sala de cirurgia, me deu uma crise de choro. Então eu disse, meu Jesus, minha vida está em suas mãos! E assim ficou. E assim continua!

Chegando na sala de cirurgia, fui colocado na mesa. A partir daí, me lembro de estar olhando aquelas luzes dos refletores que ficam acima do paciente. Me aplicaram um soro e, em menos de 30 segundos, apaguei.

Nas próximas cinco horas foi como eu se não tivesse existido. De nada me lembro, nem de sonhos.

Acordei na UTI, entubado e com fios de monitoração pra todo lado. O barulhinho do monitor principal fazia aquele melancólico pip, indicando que meu coração funcionava direitinho.

Foi um alívio perceber que eu estava vivo!

Não sei quantas horas depois, mas deve ter se passado umas oito horas. Aquele tubo na minha garganta incomodava demais, não podia falar, não conseguia dormir mais. Comecei a acenar para que retirassem e só ouvia do médico e enfermeiros: calma, já vamos retirar.

Mas a parte do tubo que ficava na minha boca começou a me trancar a respiração e fui perdendo o fôlego. Foi então que comecei a mexer mais do que já vinha fazendo. Até que veio alguém, não sei se médico ou enfermeiro, e começou a retirar aquela tubulação.

Primeiro cortou algo segurava o tudo na minha boca e avisou: vou retirar o tubo, você vai respirar sozinho. E cortou a ligação da minha respiração artificial que vinha de uma máquina de ventilação mecânica.

Respirei então sozinho. Graças a Deus, não precisaria ficar mais um minuto na UTI por causa de respiração, ao ouvir: o senhor está respirando sozinho!

Que alívio!

Mas o pior veio em seguida.

Me avisaram: vamos retirar o tubo, respira fundo.

Inseriram um tubo mais fino dentro do que estava em mim, mais ou menos uns 40 centímetros. Esse tubo menor era para sugar as secreções traqueais e orais.

Foi o pior momento de toda internação e cirurgia. A retirada me provocou uma situação de pânico por que tive náuseas, ânsias de vômitos seguidas durante uns 30 segundos. Me pareceu estar virando do avesso.

Mas passou e em seguida uma sensação de tranquilidade enorme. Eu estava respirando sozinho e podia falar novamente sem o incômodo do tubo.

Meus rins funcionam perfeitamente. Isso ajudou na recuperação. Enquanto estava na UTI, eliminei mais de 11 litros de urina pela sonda direto na bexiga. Isso evitou que eu inchasse, como observei em um outro paciente, que ficou todo inchado, principalmente braços e pernas.

Foram vários litros de soro enquanto estive na UTI. A eliminação completa de líquidos me permitiu levantar e andar mais rápido.

Foram dois dias na UTI e me levaram para o quarto. Fui de cadeira de rodas, empurrada por meu filho Giovanni, que chegava para me acompanha no quarto. Na UTI não é permitido acompanhantes. Foi um passeio agradável pelos corredores, porque a fase mais crítica ficava para trás, na Unidade de Terapia Intensiva.

No terceiro dia de quarto, pronto para ir embora, surgiu um probleminha. Após caminhar sozinho pelos corredores do hospital, deitei para descansar. Foi um cochilo rápido e acordei ouvindo o coração pulsar na cabeça e uma sensação de agonia.

Por sorte, por Deus, meu médico chegou na hora.

Diagnosticou e, em seguida, comprovou com um eletrocardiograma, realizado ali mesmo no quarto, se tratar de uma FA (fibrilação atrial), uma arritmia frequente no pós-operatório de cirurgia cardíaca. Segundo a literatura médica que pesquisei, atinge até 20% dos pacientes de cirurgia cardíaca.

O coração sai de ritmo e dispara. Minha pulsação chegou a 198 batimentos por minuto. Com a medicação imediata, logo normalizou.

Dois dias depois eu vim pra casa.

Hoje, 16 dias após a cirurgia, me sinto muito bem. Já estou de alta do processo cirúrgico. A partir de agora serei acompanhado por outro médico, pelo menos mês a mês, até completar 6 meses. Já visitei o Dr. Celso Violin para contar como foi a cirurgia. Ele me informou que o Dr. Marcelo já havia lhe informado de como foi a operação para irrigação do miocárdio em mim.

Estou caminhando de manhã e de tarde pelo bairro, normalmente, num percurso de uns 400 metros de cada vez.

A cicatrização é demorada, mas o corte na pele já está seco. Dói um pouco no local que foi aberto, afinal, o osso chamado esterno que liga as costelas foi serrado e tudo foi aberto como uma janela que se abre para os dois lados. Nada que não seja suportável e a cada dia dói menos.

Preciso de ajuda para me levar da cama ou do sofá quando me deito. É segurança para não usar os braços, porque eles forçariam o peito, uma vez que existe o risco de abrir com um esforço que normalmente usamos ao nos levantar. Também uso um colete para caminhar, dá mais segurança.

Estou tendo problemas para dormir, porque, por 90 dias terei que dormir de barriga para cima, não posso me virar dos lados para não forçar as costelas contra o osso esterno, o que foi serrado ao meio. Sempre dormi de lado. Mas se todos os problemas fossem esse, eu seria o homem mais feliz do mundo.

E assim vamos indo.

Eu pretendo voltar em breve com uma nova crônica e um novo vídeo para contar como está sendo minha recuperação. Espero que tenho ajudado. Perguntas podem ser feitas nos comentários que responderei com prazer. Um abraço e fiquem com Deus!


segunda-feira, 4 de julho de 2022

Nos tempos das carroças


Buscando meus guardados, encontrei uma das muitas histórias que tive o prazer de reviver escrevendo e, reescrevendo, com lembranças, que no primeiro momento não registrei.
Já vai longe o tempo em que a Avenida Tupãssi vivia cheia de carroças e charretes, fazendo da paisagem um quadro colonial, peculiar daqueles anos que podiam ser chamados de dourados. Os animais que puxavam aqueles carros, a maioria com rodas de madeira, fizeram registrar na memória de quem viveu aqueles tempos um detalhe à parte. Alguns estabelecimentos mantinham um “pau de amarrar cavalo" e ofereciam água em bacias aos animais dos fregueses.
No fim do dia, as estradas, ramais e carreadores do município eram enfeitados com carroças cheias de compras, sementes e ferramentas agrícolas. Machados, enxadas e foices, eram as principais.
Carros nas ruas eram poucos. Muito poucos. Mas, veículos de aluguel eram em números expressivos, como os táxis, que superavam a marca dos quase 50, me lembrou o amigo Nelson Costa, oficial de Justiça aposentado, que nos anos 60 foi taxista, fazendo parada na antiga rodoviária, no centro da cidade.
Mesmo com os mais de dez pontos de táxi espalhados na cidade, as mulheres da zona do baixo meretrício tinham seus próprios carros de aluguel. Elas preferiam as famosas charretes puxadas por animais, cobertas com toldos e com cocheiro particular. Esses carrinhos tinham um nome vulgar: puteiro. Embora fossem comuns no dia a dia da cidade, chamavam a atenção de todos quando transitavam pelas ruas transportando senhoritas maquiadas demais para os padrões da época e vestidas com roupas de domingo. As senhoras mais pudicas da cidade viravam o rosto para não ter que vê-las. Algumas mães cobriam os olhos das filhas mocinhas, para que não vissem a "pouca vergonha", como chamavam, desfilando na avenida. "Meu Deus, é o fim do mundo! A polícia tinha que impedir isso", dizia a maioria. Tudo o que as mulheres "da vida fácil" queriam era gastar o dinheiro que ganharam na famosa e frequentadíssima Vila Triângulo, mais conhecida como Zona. Elas representavam, por serem em grande número, um filão muito bom de freguesas. Pagavam à vista e compravam coisas caras, do bom e do melhor. Pano de chita era para o povo da roça e da cidade. Elas vestiam seda e se perfumavam com Cashmere Bouquet. Enquanto a gente tomava banho com sabão de soda, elas usavam o então caríssimo Gessy Lever.
O cheiro e os montes de cocô de cavalos se destacavam no traçado da avenida, mas ninguém ligava, pois faziam parte da rotina do povo. De vez em quando, uma mula desvairada se assustava com alguma coisa e saia em disparada, atropelando o que via pela frente, só parando depois de tombar a carroça, muitas vezes cheias de sacos de mercadorias que espalhavam linguiça, fumo, sardinha, farinha, fubá, carne seca e toda sorte de compras para a semana. Eram os acidentes mais comuns do trânsito.
Tanto quanto na Avenida Tupãssi, a Rua Riachuelo, que era a saída para os então distritos de Tupãssi, Jota Esse, Palmitolândia e Cascavel, também concentrava um grande número de carroças com seus animais tratores amarrados em frente aos diversos armazéns que se enfileiram dos lados da via, se estendendo até à Rua dos Pioneiros, que ainda não tinha o nome de avenida e tinha apenas uma pista.
Eu me lembro de pelo menos sete casas de comércio de secos e molhados, as chamadas vendas. Hoje, só restou a Venda do Zé Japonês, que sobrevive sob a direção da viúva do Zé, dona Luzia Hashimoto e seu filho. Uma tradição que merece uma homenagem especial pelos anos de existência, que já são mais de 60,atendendo a uma clientela que prestigia esse comércio tradicional de balcão.
Aos sábados e vésperas de feriados, a cidade parecia uma festa, com tanta gente que vinha do interior para as compras. As lojas vendiam aos montes. Era uma época de grande crescimento e esperança. Muitos lojistas fizeram fortunas, investiram em outras cidades e foram embora. A crise que se instalou no país com a geada de 1975 foi a gota d’água que faltava para a cidade levar uma freada na corrida que a fazia crescer. A chegada das máquinas nas lavouras e o fim do plantio de algodão e hortelã que geravam emprego acabaram de jogar uma ducha de água fria no progresso.
Era um tempo bom, quando, para mim, cada dia era uma aventura diferente. Se a movimentação do dia era uma festa, o cair da noite trazia uma paz indescritível. Não se via uma viva alma no escuro das ruas sem iluminação alguma. Apenas alguns bêbados procurando o caminho de casa ou caídos até o despertar do outro dia. No alto de algum telhado ou galho de árvore, uma coruja anunciava o toque de recolher para um silêncio que só seria quebrado com o trotar da mula e o barulho da carroça do padeiro. Em cima da cristaleira de minha mãe, na sala, o tic-tac do despertador Westclox marcava o início da madrugada que chegava no mesmo silêncio noturno, fecundo e sereno, que hoje não existe mais.

Por Clóvis de Almeida 2009/2022